Marcos Tecora Teles

Marcos Tecora Teles

Tuesday, January 11, 2011

The Motor “Music” Home - A Lendária Nave da Música


Foto:Internet

   A Estrada do M´boy Mirim estava alagada,havia caído um temporal dos infernos.Sofás ainda boiavam nas calçadas, o trânsito estava completamente parado. Buzinas, calor insuportável.
Apenas mais um fim de semana de verão em São Paulo.
   Com muita paciência, consegui levar o velho Fuscão até o Jardim Ângela. Entrei na Rua da Gaita de Foles e parei na esquina da Rua dos Clarins.
   A chuva não parava, o carro também não funcionava mais. A bateria tinha arriado, não havia mais condições de sair dali sem um mecânico. Reclinei o banco e coloquei uma fita pra rodar, encontrei a caixa de latas de cerveja. Fechei os olhos e acompanhei o ritmo da chuva com a música que saía dos alto-falantes. E por ali fiquei.
    Alguma coisa me fez abrir os olhos. Vi um grande veiculo estacionado na Rua do Fonógrafo, na esquina com a Rua das Flautas Transversais.Era o veículo mais “diferente” que vi na vida. Uma mistura de tudo o que a mente humana já havia projetado.Era uma parte submarino, parte navio, parte trem e outra parte, um ônibus gigante.
    Lembrei-me que certa vez um cara que bebeu comigo num boteco, lá no Parque do Lago, me falou sobre tal “nave”. Com todo respeito, ouvi sua história. E claro, não acreditei.
Parecia estranho, de repente o céu estava estrelado como nunca antes eu havia reparado.
   O estranho veículo estacionado, bem ali. Fiquei encantado! Uma força desconhecida me puxava em sua direção, era irresistível tamanha beleza.
Abri a porta do velho Fusca e caminhei em direção ao veículo. Meus olhos incrédulos buscavam os detalhes, era tudo muito perfeito.
   As dezenas de rodas eram douradas, os pneus tinham faixas prateadas, em todo o redor da estranha “nave” havia sacadas, como nas velhas “jardineiras”, que décadas atrás cruzavam a cidade.
   Fui me aproximando, entre curioso e cauteloso.Uma pequena porta se abriu, um senhor desceu lentamente segurando nos corrimões dourados.Ele veio em minha direção, sorrindo, acenando e já me convidando a embarcar na nave.Ele não pronunciou nada, mesmo assim entendi e aceitei o convite.Subi a pequena escada e entrei na mais incrível experiência de minha vida.
   A entrada pequena não demonstrava a exata medida daquele veículo espetacular, tudo era enorme e bonito, a decoração era luxuosa, belos tapetes forravam o assoalho, grossas cortinas cobriam as janelas e a luzes coloridas iluminavam delicadamente todo o interior.
   Logo na primeira sala três rapazes tocavam um jazz, aqueles dos primórdios, com baixo, pianola, um saxofone, um banjo e uma bateria dixie.Me cumprimentaram com sorrisos e acenos com as cabeças,gentilmente retribuí os cumprimentos e prossegui corredor adentro.
   Na sala seguinte reconheci muitas pessoas que ali estavam. Nat e Pixinguinha conversavam animadamente. Frank e Tom faziam um dueto ao som do lustroso Steinway e a cada pausa bebericavam um gole de champagne. Todos pareciam felizes, percebi que se tratava de uma grande festa.
   Chegamos ao bar e lá estava ela, usando um vestido de veludo azul, colado ao corpo, com um decote de pecadora e exibindo curvas libidinosas.Fixei meus olhos em seus olhos, nunca a havia visto antes, mas senti que ela me reconheceu de algum lugar do passado.
   O velho senhor segurou a minha mão e colocou sobre a mão dela, indicou o corredor em frente e nos incentivou a prosseguir “nave” adentro.
   Não queria parar pra pensar no que estava acontecendo, foi somente uma cerveja que tomei lá fora... Me sentia leve, feliz e sonâmbulo, me senti dentro de um sonho,personagem de um filme dos anos vinte, ou trinta, ou sei lá... Sei que estava vivendo algo misterioso e que tive medo que fosse mesmo um sonho.E tive medo de acordar.
   Ela me conduzia pelos corredores, curioso eu observava as cabines. Em uma delas John gesticulava para Raul e ambos sorriam.Encostados nas paredes do corredor Vallens e Marilyn trocavam carícias ao som do blues que saía do velho violão Martin de Johnson.
   Na passagem de um “vagão” para o outro ela se agarrou em meu pescoço e me beijou demoradamente. A lua e a brisa da madrugada foram cúmplices da mais bela cena de amor que vivi.
   Achei graça quando adentrei um grande espaço, que mais parecia uma sala de estar, sentados frente à frente Bob, Tim e Brown, gargalhavam enquanto acendiam um rechonchudo “baseado”.
   Ela me levou para uma pequena e confortável cabine e me amou...Me amou... Me amou...
   Percebi que tudo parecia estar chegando ao fim, todos se dirigiam ao grande salão. Foi uma correria, todos queriam os melhores lugares. Afinal, era hora do grande show da noite. No palco principal, depois da apresentação de Enrico, Callas e Fitzgerald, era a vez dos Kings of Stars.Nada mais nada menos que a maior banda de todos os tempos. Juntos pela primeira e última vez, Hendrix na guitarra, Bonhan na bateria, Pastorius no baixo e nos vocais Mercury, Janis e Presley.
   Na plateia, Jackson, Curt, George, Marvin, Holliday e muitos outros faziam um sonoro, animadíssimo e afinado coro.Um outro espetáculo à parte...
   O sol do meio dia já batia em meu rosto, quando um garoto bateu no vidro do carro, gritava pedindo para que eu tirasse o velho Fuscão da frente da garagem de seu pai.
   Uma profunda decepção me atacou. Pigarreei, tossi, esfreguei os olhos e não reconhecia o lugar onde estivera estacionado a noite toda. A placa no poste me trouxe de volta, Rua dos Clarins.
    A “nave’ foi um doce sonho. O Motor” Music” Home era só uma lenda da qual ouvi falar lá no Bar do Bal. E já era hora de ir embora, tentar aproveitar o resto do domingo no churrasco lá no Guaracy.
   Liguei o Fuscão 77, enfim, ele “pegou”. Subi a Rua da Gaita de Foles e entrei na Estrada do M´Boy Mirim.As imagens não me saiam da memória. Juro que ainda podia sentir o perfume dela, um pouco do que ficou em minha camisa. Nos meus ouvidos ainda ecoava a música mágica das guitarras, dos oboés e das flautas.
   O semáforo fechou, procurei a caixa de latas de cerveja, um pedaço de tecido veio no lugar. Era um cachecol, o mesmo que Presley usara no show dos Kings.
   Olhei no retrovisor, alguém de vestido azul entrou num táxi, ainda pude ver seus lábios se juntando, formando um beijo. E era pra mim.
   Até hoje não consegui saber se sonhei ou se vivi aquela noite, aquela festa.O que sei é que a velha “nave” nunca mais saiu de mim.
   Dia desses no Largo Treze entrei em um bar pra comprar cigarros, reconheci o cara que bebeu comigo no Parque do Lago.Ele sorriu e me convidou para uma cerveja.Me contou muitas histórias e por fim me confessou...Era ele quem pilotava o Motor“Music” Home.