Zé Azul do Rio de Janeiro
Me lembro bem de como vim parar aqui. Foi depois de
uma briga com meu pai. Meu pai? Meu pai era um homem violento e espancava todos
em casa por qualquer motivo. Era proibido olhar no rosto de meu pai, ele não
gostava. Meu pai não sorria, não chorava, nunca demonstrava emoção alguma, era
impassível. Nunca o compreendi direito e confesso que também nunca quis
fazê-lo.
Meu pai bebia muito, aí as coisas
ficavam um pouco piores. Humilhava minha mãe, dizia-lhe impropérios, ofensas e
constantemente, agressões físicas.
Foi em uma noite de São João que
saí de casa.
Meu pai estava descontroladamente bêbado. Estávamos em volta da fogueira na casa do Biquinha, na Rocinha, era uma festa agradável. Todos bebiam, dançavam forró e pareciam felizes. Aquela gente fazia questão de manter a tradição que traziam de suas cidades do nordeste.
De repente sem nenhum motivo,
como de costume, meu pai se levantou, dirigiu-se até a cadeira onde minha mãe
estava sentada e deu-lhe um soco violento no rosto. Minha mãe caiu e meu pai
ainda a chutou na barriga.
Meu sangue ferveu, meus olhos se encheram de fúria e meu coração de ódio. Um ódio vivo e cristalino. Com o pedaço de madeira que eu estava alimentando o fogo, desferi-lhe um golpe na cabeça. Meu pai caiu na fogueira e não conseguiu se levantar.
Meu sangue ferveu, meus olhos se encheram de fúria e meu coração de ódio. Um ódio vivo e cristalino. Com o pedaço de madeira que eu estava alimentando o fogo, desferi-lhe um golpe na cabeça. Meu pai caiu na fogueira e não conseguiu se levantar.
Algumas pessoas correram pra socorrer minha
mãe, outras meu pai, eu fique ali, sem rumo, sem falar nada.
Coloquei o pedaço de madeira na
fogueira, dei um beijo em minha mãe e saí andando.
Nunca mais voltei pra casa. Nunca mais
fui a mesma pessoa. Carrego na alma um pouco de culpa, de revolta e
principalmente solidão.
Vivo nas ruas usando roupas feitas de saco de
lixo azuis. Me chamam Zé Azul.Sou o Zé Azul do Rio de Janeiro.
Sobrevivo desde então, comendo sobras que me
dão. Durmo nas marquises, nas praças, nas praias e onde me for conveniente. Não
cobro nada da vida e a vida nada me cobra também.
Sofro demais com minha opção de viver por
aí... Principalmente pelos meus iguais. Irmãos e irmãs de rua, cada um com sua
resposta pra sua condição. E são tantas histórias, histórias de violência,
doença, vícios e desistência.
Não luto por mais nada, não quero nada além
do próximo resto de comida como refeição.
Sou só, caminho só, durmo só, choro só também.
Não aceito dividir esta minha dor de existir. Ela é só minha e de mais ninguém.
Passo os dias olhando as árvores que mudam de
lugar todas as noites. Homens, mulheres e crianças que passam o dia nos parques
e se recolhem a noite pra morrer um pouco.
A Arlete morreu ontem. Arlete era uma
andarilha com problemas mentais. Foi estuprada e morta por um bando de meninos
que pararam um carro embaixo do viaduto em que ela dormia. Acho que ela nem
sofreu muito. Nós que vivemos desta maneira aprendemos a morrer calados sem
chamar a atenção.
Passo meses sem pronunciar palavra alguma. Não
tenho o que dizer, nem tenho quem me escute. Acho que não precisamos usar as
palavras, usamos nossos olhos solitários.
Tenho que confessar que morro de medo da noite.
Ela me assusta, vejo fantasmas em todos os cantos. Quando durmo e consigo
sonhar, vejo imagens de minha casa. Vejo sempre a casa vazia, não há ninguém
nela. É vazia como meu coração.
Não entendo como ainda nascem pessoas
nas ruas todos os dias. E já nascem com várias idades, alguns até já nascem
velhos e caquéticos. Outros tantos nascem bem vestidos, mas nascem todos mudos.
Não tenho mais vontade de sair dessa
condição. Me sinto livre, porém, me sinto só. É uma solidão sem fim, sem dor,
sem sentido algum, apenas solidão. Nem triste, nem dolorida, apenas e tão
somente solidão. Aprendi a me proteger da noite, dos fantasmas do passado,
aprendi a me proteger de mim.
Meu coração joguei na fogueira, naquela noite de São João, junto com minha ira, meu ódio e minha emoção. Sou o Zé Azul, o Zé Azul do Rio de Janeiro. É assim que chamam nas ruas. Sou só, caminho só, durmo só. Os caminhos que percorro me ensinaram que não devo fazer escolhas. É só dizer sim e não. É só procurar a luz da lua nas ruas vazias do Leblon e ver o sol nascer por trás das pedras do Arpoador, e sempre antes de todos.
Não sei por que motivos, passei em frente a
casa no morro em que vivi.Meu pai estava sentado na porta, de cabeça baixa.Vi
que chorava. Sei que não me reconheceria nessas roupas de sacos de lixo. Lá
dentro da casa tenho certeza de ter ouvido alguém pronunciar meu nome. Ouvi
alguém dizer: “- Lylian”.