Foto: Internet
Um Mendigo, Um cigarro
e Um Chope
Aquela tarde
de dezembro estava imensamente quente, o verão havia chegado com todo seu calor
e majestade.
As ruas
estavam vazias naquela tarde de domingo quando nos sentamos no Bar Brahma, na
esquina da Avenida São João com a Avenida Ipiranga. Léa e Mauro, meus amigos,
que quando vinham do interior, marcavam nossos encontros ali, no coração da
cidade.
Os dois
estavam mais calados que o habitual. Léa com seu jeito sempre aristocrático
reclamava da crise, da queda nos investimentos, dos preços das roupas de grife
e dos preços das passagens para a Europa, onde viajava de férias a cada seis
meses.
Mauro estava
preocupado com a queda do valor das ações, da baixa liquidez do mercado.
Eu apenas os
ouvia, não entendia muito bem o significado daquelas conversas, meu mundo era outro.
Eu era apenas um moço da periferia... apenas os ouvia.
Tomávamos Chope,
comíamos porções das mais variadas e íamos deixando o tempo passar.
Mas naquela
tarde foi diferente.
Meus amigos
estavam mais calados do que de costume, cada um de nós absorto nos próprios
pensamentos e não nos demos conta de que há tempos um mendigo nos observava. Ele
estava ali o tempo todo, parado, com suas roupas esfarrapadas, uns trecos
amarrados à cintura e calçava uma velha sandália que mal lhe cabia as solas dos
pés.
Léa o viu e
assustou-se, pensou em chamar a segurança, lhe acalmei dizendo que estávamos seguros.
Estávamos sentados dentro do cercado que limitava o bar das avenidas.
O mendigo
continuava lá, nos olhava atentamente, olhava o rosto plastificado de Léa, o rosto
endurecido de Mauro e parecia desnudar nossas almas esfarrapadas e cansadas. Eu
o olhei nos olhos e por um instante vi refletir a miséria que cada um de nós
carrega. Ele nos olhava e nos tornava a pequenos.
Léa me pediu
para que oferecesse um trocado àquele homem, para que ele nos deixasse em paz. O
mendigo sorriu e caminhou lentamente em nossa direção, não podíamos mais
escapar de sua presença incômoda. Ele se aproximava, não dava mais tempo de
contê-lo. Léa parecia querer sair correndo dali, apavorada com a presença daquele
andarilho.
Não deu
tempo.
O mendigo se
aproximou e surpreendentemente se apresentou:
- Boa tarde,
senhora e senhores. Me chamo Sivaldo,sou viciado em drogas,mas não as consumo
mais todos os dias. Não sou ladrão, nunca roubei e nem preciso. Não há nada
mais para mim no mundo de vocês. Sou apenas um vagabundo, maltrapilho.
O mendigo
nos calou com sua voz calma, serena e pacífica. Ele sabia que éramos pobres
humanos, perdidos em nosso mundo egoísta, solitário e doente. Ele sorria pra mim,
sabia que eu ainda tinha um pouco do que sobrou da minha própria infância, de
alguma forma, me enxergou como igual e dirigiu a palavra a mim
- Irmão, posso
te pedir um favor?
Eu
permanecia mudo, apenas sorri e ele continuou:
- Irmão, sabe
de uma coisa? Há muito tempo que vivo por estas ruas. Há muito tempo não me
sinto gente, não me sinto humano. Sabe por quê? Porque as pessoas me fazem
acreditar que não sou. Eu vi vocês aqui e pensei em pedir um trocado, um pouco
de comida, mas eu quero me sentir gente, me sentir humano, sabe? Eu só quero um
cigarro, desses, dos bons e um chope, o irmão pode pagar um pra mim?
O céu
começava a ficar escuro, a tempestade se aproximava e o vento já varria as ruas
do velho centro. Com um cigarro em uma das mãos e o copo de chope na outra, Sivaldo
arrastava as pernas,como se desfilasse em uma escola de samba,fantasiado com
suas roupas de mendigo. Gesticulava e seguia de olhos fechados, como se ouvisse
uma bateria de escola samba que tocava um samba enredo divino.
Léa, Mauro e
eu, acompanhávamos com nossos olhos incrédulos Sivaldo desaparecer perto do Boulevard.
Sentados de
frente para a avenida,com os braços apoiados na pequena cerca,permanecemos em silêncio,
tentando entender o que acabara de acontecer, o que tínhamos vivido naquele
breve instante.
A chuva veio
e me levantei para sair.
- Não vai esperar a
chuva passar? - me perguntou Léa.
A pergunta
de Léa me fez lembrar que há tempos eu não percebia como era bonita uma tarde
de chuva. Há tempos eu não caminhava na chuva. Quando criança me diziam que,
andar e chorar na chuva nos lavava a alma.
Me despedi
de meus amigos e atravessei lentamente as avenidas,deixei que as lágrimas
chegassem.
Eu também
precisava me sentir humano novamente, eu também precisava me sentir gente.