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Lembro que era uma sexta-feira de um mês de abril, não
me lembro qual foi aquele ano, acho que 1976 ou 1977, foi o dia em que ficamos
sabendo que um médico iria começar a atender as pessoas do nosso bairro, seria
inaugurado um ambulatório, perto do campo do Águia Futebol Clube.
O dia da inauguração foi um acontecimento.
Uma verdadeira procissão se encaminhou para lá, todos
queriam conhecer o médico, Doutor Francisco das Chagas, ou como ele mesmo se intitulava,
Doutor Chicão.
O Zenon foi com seu trio de forró, teve cachorro-quente,
pipoca e distribuição de Cibalena.
Doutor Chicão era um homem alto, forte, jovem, estilo bonachão,
gostava de conversar e contar piadas, conquistou todos nós.
Miltinho e eu, demoramos alguns dias para conhecê-lo, até
Miltinho furar o pé em um prego nas caixas de banana do Mané Bananeiro.
A mãe de Miltinho correu para levá-lo ao ambulatório e
eu, claro, também fui com eles.
Quando entramos no ambulatório, ficamos um pouco decepcionados,
a gente achava que seria igual a um hospital, igual aos das novelas, com
enfermeiras bonitas e tudo o mais, era só a casinha da Dona Valda que foi
adaptada para ser o ambulatório. Mas era bacana!
- O que aconteceu meu rapaz? -Doutor Chicão,
sorridente, perguntou para Miltinho.
- Furei o pé no prego do Mané!
Enquanto o médico fazia o curativo eu olhava o seu gabinete.
Não havia muita coisa ali. O que realmente me chamou a atenção foi uma grande
seringa com uma agulha enorme, um taco de sinuca e uma chuteira suja de barro,
que ficavam no balcão, atrás da cadeira.
Ao reparar minha surpresa, o Doutor falou sorrindo
- Essa é a seringa da sorte e ninguém escapa dela.
Doutor Chicão só abria o ambulatório às sextas-feiras,
durante o resto da semana, trabalhava em outros hospitais, nós, do bairro, ele
atendia de graça. Doutor Chicão tratava de qualquer doença, resfriado, caganeira,
pano branco, vertigem, hemorroidas e tirava lombrigas da bunda das crianças com
papel higiênico. Até hoje, lembro do filho do Tomé de Lúcia, correndo com uma lombriga
pendurada na bunda e Doutor Chicão correndo atrás dele para puxar.
Toda sexta-feira, quinze para às seis da tarde, ele
olhava o relógio e gritava lá de dentro do gabinete:
- Todo mundo pra casa! Tenho compromisso no Bar de
Ceará, sinuca, cerveja e mocotó me esperam! Até semana que vem!
Quando alguém reclamava, ele saía do gabinete com sua
seringa da sorte e falava bem alto:
-Dona Mariquinha! Benzetacil pra todo mundo!
Era aquela correria porta afora.
Aos domingos, Doutor Chicão jogava no time do Nacional
Futebol Clube. Era um zagueiro bruto, perna-de pau, suas únicas especialidades
em campo eram, fazer pênalti e gol contra. Doutor Chicão não tinha piedade dos
atacantes do time adversário e quando dava uma “entrada “mais dura e o pobre do
adversário reclamava ele logo gritava:
- Se ficar reclamando, vai ter Benzetacil 1.200 na
sexta-feira!
O coitado do jogador adversário, com a canela toda
ralada, diante de tamanha ameaça, abaixava a cabeça e lhe pedia desculpas.
Depois de algum tempo, Miltinho me chamou a atenção
para um fato curioso e que se tornaria corriqueiro:
- Marquinhos, você já percebeu que todo mundo que
entra no gabinete do doutor sempre sai com a bunda doendo e a perna dura?
-Sim, eu sei.
-Porque será que só a Maria do Bundão é a única que
sai sorrindo?
Maria do Bundão era na verdade, Maria do Rosário, por
motivos óbvios, nós lhe demos esse carinhoso apelido, mas ela não sabia, ou
fingia não saber. O que importa mesmo é que ela era linda, a moça mais bonita
do bairro, sempre sorridente, simpática, educada. Maria do Rosário era fonte de
inspiração para todos os marmanjos do bairro. Era nossa musa.
Todos foram percebendo a cumplicidade entre Maria do
Rosário e o Doutor Chicão. Quando ele a via, abria um sorrisão. Ela também.
O mais interessante é que ela sempre era a última
paciente do doutor, sempre a última a sair do ambulatório. E quando saía,
arrumava a roupa e retocava o batom, enquanto o doutor trancava as portas.
Maria do Rosário era cobiçada pelo Sargento Pestana,
um policial militar que também morava no bairro.
O Sargento Pestana era casado com Matilde, uma
gordinha simpática que quando caminhava parecia uma minhoca rebolando. Matilde
organizava festas para os rapazes mais velhos do bairro, mas só quando o
sargento estava trabalhando, fazendo ronda. O sonho meu e de Miltinho era de um
dia poder ir em uma festa da Matilde.
O Sargento Pestana vivia seguindo Maria do Rosário.
Quando a via na rua, dirigia a viatura bem devagar e lhe fazia gracejos e propostas,
vivia tentando puxar conversa, sem sucesso. Ninguém gostava do Sargento Pestana,
acho que nem mesmo a Matilde.
O Sargento Pestana ficou furioso quando soube que a Maria
do Rosário estava de namoro com o doutor.
Não sei se era por causa do tempo que era mais frio
aquela época, mas ficávamos gripados constantemente. Minha prima tomava Xarope
São João, ela adorava. Miltinho e eu também queríamos tomar. Um dia fomos ao
Doutor Chicão e ficamos forçando a tosse até ele nos receitar Xarope São João.
O xarope não era muito bom para curar tosse, mas nos deixava alegres, leves, sorridentes e com uma preguiça deliciosa, talvez pelo excesso de álcool que continha.
Quando Doutor Chicão descobriu o verdadeiro motivo de gostarmos tanto do tal xarope,
nos aplicou Benzetacil.
Doutor Chicão gostava muito do Duílio, com ele o
doutor era complacente. Duílio era o artilheiro do Nacional Futebol Clube, como
bebia demais, o doutor lhe receitava Pedialyte, soro infantil, para curar a
ressaca e poder jogar no domingo.
Nunca esqueci desta receita...
Em uma tarde de sábado, um rapaz apareceu no Bar do Ceará.
Disse que seu nome era José. Chegou sorridente, pagou refrigerante, cerveja e
petiscos para todos, disse que acabara de se mudar para o bairro. Era um homem
bem jovem, tinha uma cabeça enorme, grandes orelhas, os olhos também eram
grandes e saltados, mas tinha uma boca miúda que não combinava com o resto do rosto.
Miltinho tacou-lhe imediatamente um apelido, Zé Boquinha.
Zé Boquinha era solteiro, morava em uma casa bonita na
Rua Alfredo Ometecidio, atrás da igreja São José Operário e tinha um SP2
amarelo. Logo começou a fazer festas em sua casa, festas estas que são inesquecíveis.
Ás vezes, convidava alguns amigos e até Miltinho e eu fomos algumas vezes.
Lembro de um carnaval. Doutor Chicão organizou uma
batucada e saímos em cortejo pelo bairro, depois fomos todos para a casa de Zé Boquinha.
Foi uma grande festa e ainda sinto como se ela nunca tivesse terminado.
Meses depois do carnaval, não me lembro o motivo pelo
qual Miltinho e eu fomos ao ambulatório. Sei que lá, encontramos Dona Julieta.
Dona Julieta tinha quatro filhas, todas bonitas, um
pouco assanhadinhas, é verdade. Ouvimos quando Dona Julieta falou com tristeza
para o doutor:
- Doutor Chicão, minhas meninas não estão muito bem, estão
com as barrigas inchadas, acho que é barriga d´água. O que o senhor pode fazer?
Doutor Chicão ouviu atentamente o lamento de Dona
Julieta e lhe falou:
-Fique tranquila. É a água do poço. Antes de beber,
ferva. Mas de qualquer forma, traga suas meninas aqui.
Enquanto o doutor tranquilizava Dona Julieta, Miltinho
me cutucava e dizia baixinho:
- Marquinhos.
- O que é Miltinho? Eu lhe perguntava.
Percebi que Miltinho estava preocupado e que estava
querendo falar com o doutor. Ele não resistiu e gritou:
- Doutor! Elas beberam a água da casa do Zé Boquinha!
- Como é, Miltinho? Que conversa é essa? Perguntou o doutor,
olhando para o rosto já pálido de Dona Julieta.
Incentivado pela pergunta do doutor, Miltinho contou
um terrível segredo:
-Sim, doutor, a água da casa do Zé Boquinha! Nós
ouvimos ele falar para as meninas de Dona Julieta, “vamos tomar uma aguinha, lá
em casa, quem bebe da água lá de casa, nunca mais esquece”.
Silêncio, silêncio, silêncio e mais silêncio...
Tempos depois, para nossa tristeza, alguns homens
vieram com jipes, tratores e caminhões, chegaram na surdina, em uma madrugada e
derrubaram o ambulatório do Doutor Chicão.
O Sargento Pestana falava com cara de mau, sorrindo e orgulhoso
que acabou com o médico comunista e subversivo.
Passamos dias com infinita tristeza, com pena e
saudades do nosso médico e amigão.
Para nossa alegria, dias depois, vimos Maria do
Rosário, com uma mala, embarcando em um carro, lá dentro, além do motorista,
havia outra pessoa, Doutor Chicão. Ficamos tristes por ele ir embora, também
porque levou nossa musa, mas ficamos felizes por ter ido em paz e por ficarmos
livres de suas terríveis injeções de Benzetacil.
Nunca mais tivemos notícias de Doutor Chicão e Maria
do Rosário. Acreditamos que foram felizes. Eles mereciam e eram pessoas
especiais.
Zé Boquinha, encontrei muitos anos depois em um baile
de carnaval do Arakan Clube, estava fantasiado de Adão rodeado por um grupo de
garotas vestidas de Eva.
Hoje, sei que nós humanos também somos movidos pela
saudade.
Mas como dizia Doutor Chicão: “não há medicina, nem
esparadrapo, nem bandagem ou Penicilina que possa curar uma ferida que se chama
saudade”.