Eles são muitos. Eles dormem pelos
cantos e até no meio da Praça. Você os olha, mas não os vê. Provavelmente, você,
surdo, nunca ouviu aquelas vozes.
É que você, surdo, passa com pressa, de
cabeça baixa, teclando e falando ao seu telefone celular. Você, surdo, está
sempre conectado com sua empresa, seu patrão. Você, surdo não ouve os mudos da
Praça da Sé, porque está sempre consultando no seu “tablet” o saldo de sua
conta bancária. Mas eles estão todos lá. Todos os dias e noites. Eles vivem lá.
Mas ontem foi diferente, ontem foi
mágico!
Eles estavam lá, em frente ao palco. Muitos
dividiam suas garrafas de cachaça, muitos outros dançavam e se drogavam e
outros tantos observavam a multidão encher a praça.
Ontem foi o dia de celebrar 26 anos
sem Raul Seixas e o evento estava pronto. Na última hora resolvemos improvisar
um sarau poético. E nós olhamos e conseguimos ver os mudos da Praça da Sé.
Não, não queríamos ouvir os poetas afetados,
não queríamos ouvir os acadêmicos, não, não queríamos ouvir os revolucionários.
Nós queríamos ouvir os mudos da Praça da Sé.
Nós os convidamos. E eles aceitaram o
convite. E nos fizeram chorar.
Os mudos da Praça da Sé, eles mesmos,
maltrapilhos, viciados e humilhados foram chegando,esperaram tranquilamente o
momento de subir ao palco.
A “muda” Magdalena brincou com seus
irmãos de rua e se emocionou a ouvir sua voz nas caixas de retorno. Magdalena sorriu
seu sorriso que deveria estar há anos escondido em um canto qualquer daquela
Praça.
O “mudo” Luciano, com o rosto sujo
perguntou a todos o que é o amor. Ele mesmo respondeu, com uma linda e
melancólica voz, cantou uma triste canção.
Os mudos da Praça da Sé com o
microfone nas mãos ouviam suas vozes ecoarem por todos os cantos do velho
centro. Os surdos pararam para ouvir.
Os mudos iam passando pelo
palco,muitos cantaram,contaram histórias e falavam de suas vidas.
O evento terminou, fomos todos
embora, os técnicos,os seguranças, os artistas... os mudos voltaram a se calar.
Nós viemos embora, mas nossos ouvidos
continuam lá, na Praça da Sé. Continuaremos por muito tempo, lembrando das
vozes dos que não têm voz.
Continuaremos por muito tempo,
lembrando dos sorrisos das Magdalenas, das músicas tristes dos Lucianos... e de
um dia mágico.