Marcos Tecora Teles

Marcos Tecora Teles

Wednesday, August 24, 2016

Depois Daquele Beijo

Foto: Internet


Depois Daquele Beijo


   Hoje, exatamente hoje, faz vinte anos que vivo na mais completa escuridão. Provavelmente, minha história não seja tão especial e nem signifique muita coisa. Provavelmente, minha história seja igual à história de milhares de outras pessoas. Mas esta é minha história. E uma coisa eu posso afirmar; ninguém recebe o primeiro beijo da vida de uma garota e passa incólume pela vida.

   Depois de longos, turbulentos e tristes anos, voltei ao bairro onde nasci e vivi parte de minha vida. Fui visitar alguns amigos de minha família.
   Era uma tarde fria de agosto, um sábado. Fui recebida com afeto e percebi a comoção que causei nos amigos, ao chegar amparada por Billy, meu cão – guia. Depois dos abraços afetuosos e beijos emocionados, nos sentamos e tomamos café. Tudo como nos velhos tempos.

   Mas  a campainha tocou...
   Enquanto alguém foi atender ao portão, continuávamos conversando eufóricos e sorrindo alto.
   A voz daquela visita inesperada fez abrir uma porta no tempo. E era a mesma voz, a mesma voz melancólica do menino bonito e tristonho por quem me apaixonei um dia.
   Nosso reencontro foi como deveria ter sido, emocionante, repleto de arrependimentos e pedidos de desculpas. Tínhamos muito o que falar,mas também tínhamos muito o que calar.
   Ele quis saber de tudo o havia acontecido comigo em todos esses anos, quis saber como me sentia e eu não lhe escondi nada. Contei a ele que foi em uma tarde de sábado como aquela, onde ficamos sozinhos. Ali, naquela mesma casa, naquela mesma sala, ouvindo Van Morrison tocar na vitrola, que trocamos um beijo. Meu primeiro beijo. Eu lhe contei que foi ali, que uma garota aos catorze anos se apaixonou por um rapaz bonito e romântico. Eu o fiz lembrar que, depois daquela tarde eu lhe ligava perguntando; e agora? E ele sorria do outro lado da linha.
    Lembrei a ele que, depois daquela tarde de sábado,durante meses,todas as tardes de sábado foram mágicas,dançávamos colados e trocávamos beijos apaixonados.Sentávamos no tapete daquela sala,ele já adulto bebia vinho e eu bebia Coca- Cola.
   Eu contei a ele sobre minha tristeza. Sobre a humilhação na minha festa de quinze anos. Contei que contava os dias, ansiosa e insone, esperando o dia chegar para poder dançar com ele, eu queria dançar a valsa com meu príncipe. Mas ele não apareceu. Sem se despedir, desapareceu e nunca mais voltou. Não podia deixar de lhe contar sobre toda minha tristeza e decepção.
   Também falei que anos depois me casei com uma pessoa que quase acabou com minha vida. Eu falei que me casei com um homem que parecia me amar, mas só me trouxe dor e tristeza. Um homem violento e viciado. Um homem habituado apenas à boemia e aos prostíbulos. E não pude esconder que esse homem contraiu o vírus da AIDS e que por sorte ou sei lá, a única coisa que me passou foi sífilis e perdi completamente a visão. Talvez por piedade de mim, Deus o tenha levado pouco tempo depois.
   Contei sobre a perda de meus pais e que, desde então vivo quase só.
   Eu falava e ele só ouvia. Eu pedi para ver seu rosto com minhas mãos.Ele aproximou seu rosto do meu e lhe toquei a face.Era o mesmo rosto delicado,o mesmo perfume e o mesmo hálito que exalava vida.Eu toquei seu rosto e podia ver o passado,via as luzes das tardes ensolaradas.Eu tocava seu rosto e a mesma música chegava em meus ouvidos.Eu tocava seu rosto e nas pontas dos meus dedos ainda podia sentir a tristeza daquela alma doce,que por muito e muito tempo viveu atormentada pelo abandono na infância,pela pobreza e pela fome.Eu tocava em seu rosto e suas lágrimas escorriam por entre meus dedos e pude, enfim,saber que aquele menino bonito e tristonho também me amou um dia.
   Ele me contou que teve medo e fugiu de tudo, mas nunca se esqueceu daquela tarde de sábado. Ele também descobriu que ninguém dá o primeiro beijo da vida de uma garota e passa incólume pela vida.

   Hoje, também é sábado e minha sobrinha está me fazendo companhia. Ela vai passar o final de semana aqui em casa. Minha sobrinha não conhece toda minha história, mas ela ligou o som e colocou uma música pra tocar. ”Sweet Thing”, Van Morrison...