Depois Daquele Beijo
Hoje, exatamente hoje, faz vinte anos que
vivo na mais completa escuridão. Provavelmente, minha história não seja tão
especial e nem signifique muita coisa. Provavelmente, minha história seja igual
à história de milhares de outras pessoas. Mas esta é minha história. E uma
coisa eu posso afirmar; ninguém recebe o primeiro beijo da vida de uma garota e
passa incólume pela vida.
Depois de longos, turbulentos
e tristes anos, voltei ao bairro onde nasci e vivi parte de minha vida. Fui
visitar alguns amigos de minha família.
Era uma tarde fria
de agosto, um sábado. Fui recebida com afeto e percebi a comoção que causei nos
amigos, ao chegar amparada por Billy, meu cão – guia. Depois dos abraços
afetuosos e beijos emocionados, nos sentamos e tomamos café. Tudo como nos velhos
tempos.
Mas a campainha
tocou...
Enquanto alguém foi
atender ao portão, continuávamos conversando eufóricos e sorrindo alto.
A voz daquela visita
inesperada fez abrir uma porta no tempo. E era a mesma voz, a mesma voz melancólica
do menino bonito e tristonho por quem me apaixonei um dia.
Nosso reencontro foi
como deveria ter sido, emocionante, repleto de arrependimentos e pedidos de desculpas.
Tínhamos muito o que falar,mas também tínhamos muito o que calar.
Ele quis saber de
tudo o havia acontecido comigo em todos esses anos, quis saber como me sentia e
eu não lhe escondi nada. Contei a ele que foi em uma tarde de sábado como aquela,
onde ficamos sozinhos. Ali, naquela mesma casa, naquela mesma sala, ouvindo Van
Morrison tocar na vitrola, que trocamos um beijo. Meu primeiro beijo. Eu lhe
contei que foi ali, que uma garota aos catorze anos se apaixonou por um rapaz
bonito e romântico. Eu o fiz lembrar que, depois daquela tarde eu lhe ligava perguntando;
e agora? E ele sorria do outro lado da linha.
Lembrei a ele que, depois daquela tarde de
sábado,durante meses,todas as tardes de sábado foram mágicas,dançávamos colados
e trocávamos beijos apaixonados.Sentávamos no tapete daquela sala,ele já adulto
bebia vinho e eu bebia Coca- Cola.
Eu contei a ele
sobre minha tristeza. Sobre a humilhação na minha festa de quinze anos. Contei
que contava os dias, ansiosa e insone, esperando o dia chegar para poder dançar
com ele, eu queria dançar a valsa com meu príncipe. Mas ele não apareceu. Sem se
despedir, desapareceu e nunca mais voltou. Não podia deixar de lhe contar sobre
toda minha tristeza e decepção.
Também falei que
anos depois me casei com uma pessoa que quase acabou com minha vida. Eu falei
que me casei com um homem que parecia me amar, mas só me trouxe dor e tristeza.
Um homem violento e viciado. Um homem habituado apenas à boemia e aos prostíbulos.
E não pude esconder que esse homem contraiu o vírus da AIDS e que por sorte ou
sei lá, a única coisa que me passou foi sífilis e perdi completamente a visão.
Talvez por piedade de mim, Deus o tenha levado pouco tempo depois.
Contei sobre a perda
de meus pais e que, desde então vivo quase só.
Eu falava e ele só ouvia.
Eu pedi para ver seu rosto com minhas mãos.Ele aproximou seu rosto do meu e lhe
toquei a face.Era o mesmo rosto delicado,o mesmo perfume e o mesmo hálito que
exalava vida.Eu toquei seu rosto e podia ver o passado,via as luzes das tardes ensolaradas.Eu tocava seu rosto e a mesma música chegava em meus ouvidos.Eu tocava
seu rosto e nas pontas dos meus dedos ainda podia sentir a tristeza daquela
alma doce,que por muito e muito tempo viveu atormentada pelo abandono na infância,pela
pobreza e pela fome.Eu tocava em seu rosto e suas lágrimas escorriam por entre
meus dedos e pude, enfim,saber que aquele menino bonito e tristonho também me
amou um dia.
Ele me contou que
teve medo e fugiu de tudo, mas nunca se esqueceu daquela tarde de sábado. Ele
também descobriu que ninguém dá o primeiro beijo da vida de uma garota e passa
incólume pela vida.
Hoje, também é
sábado e minha sobrinha está me fazendo companhia. Ela vai passar o final de
semana aqui em casa. Minha sobrinha não conhece toda minha história, mas ela
ligou o som e colocou uma música pra tocar. ”Sweet Thing”, Van Morrison...