Foto :Internet
Eu me lembro
que houve um ano, lá nos anos setenta, que o inverno foi demasiadamente rigoroso.
O vento gelado soprou por dias sem parar, a garoa era intermitente, a sensação
era de inverno polar.
Aquele
inverno entrou em meus ossos e acho que nunca mais saiu.
Me recordo
de uma sexta-feira, em que fui à feira e ao Supermercado ki-Preço com minha
tia.Na volta para casa,eu estava congelando,minhas orelhas estavam duras e
minhas mãos ficaram totalmente roxas,eu estava tendo hipotermia.Quando chegamos
em casa,a primeira coisa que minha tia fez,foi providenciar uma toalha, onde
enrolou minhas mãos e depois aqueceu com o ferro de passar roupas.
Depois do
susto e já devidamente recuperado, fiquei a tarde inteira vendo televisão, até
que Miltinho gritou no portão:
-
Marquinhos!Marquinhos! Tenho uma novidade!
Imaginei...
lá vinha encrenca.
Miltinho, como
sempre que algo diferente estava prestes a acontecer, estava eufórico, mesmo
naquele frio desgraçado, vestia apenas um calção e uma camiseta. Estava suado
de tanto bater de porta em porta, contando a novidade e fazendo um convite:
- Minha avó
vai casar!Minha mãe está convidando todo mundo! - Miltinho estava feliz.
- Ué, mas
sua avó já não é casada? Minha prima perguntou.
Com ar de
superioridade, Miltinho respondeu:
- E daí? Tem
gente que já se casou tantas vezes, olha sua tia Petronila!
Tia
Petronila já estava no oitavo casamento, todos os seus ex-maridos sempre
tiveram mais de 80 anos, Tia Petronila, tinha vinte e dois anos. Tia
Petronila nunca teve boa reputação na vizinhança.
Aquela
conversa já estava tomando outros rumos, minha tia me mandou saber da mãe de
Miltinho que história era aquela. Mesmo reclamando do frio, lá fui eu.
Já na casa
de Miltinho, sua mãe me explicou que, a avó de Miltinho, sua mãe, realmente
resolveu marcar a data do casamento e que depois, com mais tempo, falaria o
motivo.
Miltinho
contou para sua mãe o que havia me acontecido pela manhã e que minha tia havia
esquentado minhas mãos com o ferro de passar roupas. A mãe de Miltinho foi lá
no quartinho dos fundos da casa e voltou com um capote nas mãos.Ela me disse
que aquele capote iria me manter aquecido quando fosse à rua e que o capote
havia sido de sua mãe,a noiva.
Confesso que
quase recusei o capote, não era feio, um tanto feminino e parecia muito antigo.
O frio lá fora falou mais alto. O danado do capote realmente esquentava.
Ao chegar em
cassa e tirar o capote,descobri coisas nos bolsos. Havia moedas sem valor, um
terço de Nossa Senhora de Fátima e para minha surpresa e alegria, um bolso
camuflado no forro onde estava escondido um envelope já amarelado. Dentro do
envelope a felicidade, seis fotografias de uma linda moça nua.
É óbvio que
as fotografias me chamaram à atenção e aguçaram minha criatividade adolescente.
As seis
fotografias da moça nua me acompanharam por semanas, toda hora eu ia olhá-las e admirar a beleza daquela moça. E eu
admirava bastante...
Fiquei
curioso em descobrir quem era a pessoa retratada nas fotografias. No começo, pensei
se tratar de alguma artista, mas aos poucos fui achando aquele rosto familiar.
Durante
dias, escondi de todos, aquele delicioso segredo, mas para fazer inveja a Miltinho,
resolvi lhe contar, e ele, claro, insistiu para que eu lhe mostrasse as
fotografias imediatamente. Quando abriu o envelope, Miltinho quase morre de
susto e gritou:
-
Marquinhos, caramba!É minha vó!
Bem... Bem...
Bem... Não vou narrar aqui a conversa que se seguiu depois. Pularemos esta
parte.
Miltinho e eu,
tomados pela surpresa, resolvemos mostrar as fotos de sua avó para sua mãe.
Não sabíamos
como começar as perguntas, estávamos sem jeito, afinal de contas, portávamos um
“terrível” segredo familiar.
A mãe de Miltinho,
como sempre, muito desconfiada de nós, sem nenhuma formalidade perguntou:
-Tá bom, o
que vocês estão escondendo, o que aprontaram desta vez?
Eu estava
envergonhado em ter que mostrar fotografias de uma moça nua para uma senhora.
- Mãe, o
Marquinhos achou umas fotos da vovó, ela está peladona!
A sala
estava repleta de pessoas que faziam os preparativos da festa de casamento da
avó de Miltinho, que seria no dia seguinte.
Fomos pegos
de surpresa com a presença e com a gargalhada do avô de Miltinho,que não
percebemos,estava no fundo da casa. Caminhando em nossa direção , gritou para a
esposa que estava na cozinha:
- Minha
velha, venha cá! Os meninos encontraram seus retratos!
A avó de
Miltinho veio caminhando devagar, estava ruborizada. O avô de Miltinho
acomodou-a ao seu lado no sofá. Ele pegou um cinzeiro, acendeu um cigarro, pegou
seu copo de cerveja e nos convidou a ouvirmos sua história e de sua noiva:
- Eu era um
rapaz bem apessoado, naquele tempo dirigia um caminhão, entregava todo tipo de
produto naquele sertão bravo. Conheci muitos lugares e pessoas, vi de tudo na vida.
Eu era um aventureiro, um conquistador. As garotas corriam atrás de mim. Aonde
eu chegava com meu FNM, logo chamava a atenção. Não parece, mas já fui o sonho
de muita garota.
Íamos
ouvindo e ríamos com sua risada. O avô de Miltinho era um homem diferente. A
cada pausa na história dava uma tragada no cigarro, que logo deixava no
cinzeiro e recomeçava:
- Um dia, vindo
de Caetité, resolvi subir a serra e passei por Paramirim. Assim que cheguei, parei
o caminhão no posto de combustível e atravessei a rua. Quando fui entrar na venda,
tive que esperar uma moça passar, a porta da venda era muito pequena, não
passavam duas pessoas ao mesmo tempo. Sorri para ela e a segui com os olhos, lá
na frente, vi que ela olhava para trás. Já falei que eu era conquistador?
Sorrimos
todos.
Aquele
homem, pouco a pouco foi mudando o tom de sua voz, falando mais baixo e
abraçando sua noiva, que cada vez, ficava mais próxima dele. Ele a abraçava com
ternura,como se tivesse medo de quebrá-la,como se ela fosse uma flor de pétalas
delicadas. Ela era, era mesmo.
Afagando os cabelos dela ele continuou:
-A cada vez
que passava por Paramirim, eu fazia o possível e o impossível para vê-la. Só
depois de meses é que descobri onde aquela moça morava. Então, passei a
circular pela rua de sua casa. Demorou mais do que eu esperava, mas um dia ela
falou comigo.
A avó de
Miltinho continuava ruborizada e sorria timidamente aconchegada ao noivo, ouvia
sua história de amor sendo contada para os filhos, netos e alguns amigos privilegiados.
- Mas tive
uma decepção, gente. -Falou o avô de Miltinho – Ela era noiva!Estava de
casamento marcado!
Mais uma
surpresa, ficamos espantados e ainda mais curiosos.
-Eu estava
apaixonado e quando ela me contou que iria se casar, não aguentei, fui pro bar
de Telefone e tomei um pifão daqueles. E tem outra coisa, acabei conhecendo o
pai dela e ele mesmo me convidou para o casamento da filha.
A avó de
Miltinho sorriu e comentou:
-Acho que
foi você quem se convidou.
O avô de Miltinho
tomou mais um gole de cerveja e prosseguiu a narrativa:
- Bom, uma tarde, arrumei um jeito pra poder falar com ela, nesse
meio tempo, eu já sabia que ela também estava gostando de mim. Eu tinha certeza
que ela não queria se casar com o malacafudo do Gil de Ribamar, um sujeito desclassificado.
Mas esqueçam ele...
O avô de Miltinho foi bruscamente interrompido pela neta mais
nova, que estava ansiosa pra saber como terminaria a história.
- Que demora vovô!Conta logo!
- Tudo bem. - o avô de Miltinho prosseguiu - Fui ao casamento,
fui à igreja, assisti a cerimônia, escutei o sermão do padre, rezei o pai-nosso
e bebi muita cachaça na festa. Chamei a noiva para uma conversa e lhe falei: Arrume
suas coisas, vamos embora porque eu te amo.
Os olhos da avó de Miltinho estavam úmidos, as lágrimas já
rolavam em seu rosto que parecia não querer envelhecer. Ela se aconchegava
ainda mais nos ombros de seu noivo. Havia uma cumplicidade entre eles que era
inexplicável.
- E pra terminar – disse o avô de Miltinho – fugimos para São
Paulo e nunca nos casamos oficialmente, afinal de contas, a avó de vocês ainda
estava casada. Agora que sabemos que Gil de Ribamar partiu desta para melhor, vamos
nos casar.
A festa de casamento, os dois velhinhos no altar dizendo sim
e trocando um beijo apaixonado, jamais sairá de minha memória.
Tempos depois, devolvi as fotografias para o avô de Miltinho.
- Marquinhos, não eram seis fotografias? Aqui só têm
cinco!Miltinho me inquiriu.
-Não, são só cinco!
-Mentira!Eram seis!
Uma daquelas fotografias guardei como lembrança, pelo
privilégio de ter conhecido uma incrível história de amor.
Hoje, já não há mais invernos intensos e nem mais histórias
de amor como antigamente.